quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Entre Deus e o Diabo


"Há uma luta entre Deus e o Diabo e seu palco é o coração humano, nos diz Dimitri Karamazov, um dos heróis de Dostoiévski."

O HABITAT natural da alma é viver entre Deus e o Diabo. Sem esse combate, a alma se dissolve em pequenas manias diárias e fica pequena.

Uma das faces da miséria humana é a vaidade, e a vaidade quer agradar. Como diz a escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís, hoje todo mundo quer agradar, o professor, o artista, o metafísico. Sua tese é que no fundo deste desejo de agradar está o trauma infantil do desamparo que nos afeta a todos. Ao tentar agradar, buscamos fugir do medo do desamparo. Quando o intelectual é afetado por este desejo, ele se transforma numa máquina de repetição de unanimidades a fim de agradar a opinião pública.

Também morro de medo, como não? Ainda mais hoje, quando agradar é um conceito cientifico na sociedade de mercado. Quando atingida pela unanimidade, a opinião pública torna o ar irrespirável. Segundo a ciência da opinião pública, discordar dela é suicídio.
A partir de sua pequena janela, em seu pequeno apartamento de classe média, onde a televisão reproduz um desses programas alegres de domingo, nossa heroína, a opinião pública, contempla sua criação. Com uma lupa, vasculha o mundo, em busca de um vírus que justifique cientificamente seu medo.

Até o Diabo fica pálido diante dessa moradora de apartamento de classe média, que vasculha o mundo com sua lupa. O Diabo se esconde, sentindo-se finalmente derrotado, com as faces vermelhas de pudor.

Há medos e medos. Há medos que nos engrandecem e medos que nos humilham. O medo de Hamlet nos engrandece: afinal, seria eu, no fundo, uma caveira vazia? Ou seria eu uma alma cega, que, mesmo sendo, no fundo, uma caveira vazia, pressente a presença de seu criador e o persegue arrastando-se pelo chão?

O medo de quem grita nas farmácias em busca de álcool gel nos humilha. Os olhos de um chimpanzé dentro de sua cela no zoológico são mais humanos do que a obsessão de quem lava as mãos a cada segundo.

Tanto o professor, quanto o artista, o metafísico, são obrigados a seguir o roteiro da concepção de vida medíocre da classe média em que só pode ser dito o que "agrega valor à vida". Cuidado! Os olhos da moradora do apartamento enxergam tudo o que se move em sua criação. E nela, todos devem ter seus orçamentos equilibrados.

O professor deve ver diante de si alguém que, por definição, nunca erra, e se preocupar com sua autoestima, o artista deve pintar o rosto do pequeno deus miserável que sonhamos ter dentro de nós, o metafísico, este coitado, vira escravo de um universo que deve estar a nossa disposição a cada segundo resolvendo até nossos crediários.

Confesso: eu não tenho uma concepção de vida, sou um coitado. Vejo a vida como Pepi, a faxineira do romance de Kafka "O Castelo". Pelo buraco de uma fechadura, vejo a vida e seus muitos vultos aos pedaços, arrastando-se pelas paredes. A duras penas pressinto suas formas. Muitas vezes estremeço quando as pressinto mais agudamente.

Já tentei ter uma concepção de vida, mas desisti e hoje, como diz o filósofo romeno Cioran (século 20), eu acho que grande parte dos problemas do mundo advém da praga que é todo mundo querer ter uma concepção de vida. Quando estou diante de alguém que tem uma concepção de vida, recuo assim como quem recua de um predador. A certeza acerca do que seja uma vida plena me apavora. Antigamente apenas alguns poucos eram tomados por esta febre, mas hoje, como vivemos no mundo das grandes quantidades, todos se acham no direito de ter concepções de vida.

A indiferença faria do mundo, talvez, um lugar melhor. Mas sei que isso é difícil de ser compreendido por quem se vê como um agente do bem, a partir de seu pequeno apartamento de classe média, ao som de seu programa alegre de domingo. Quem assim se vê normalmente não tem qualquer piedade.

Nessas horas, sinto saudades de Deus e daquele tipo de santo que vivia o dilaceramento de quem se vê tragado, de um lado, pela graça de Deus, e, do outro, por sua natureza orgulhosa, que se revolta contra os elementos naturais, apenas porque eles lhe são indiferentes.

Há uma luta entre Deus e o Diabo e seu palco é o coração humano, nos diz Dimitri Karamazov, um dos heróis de Dostoiévski. O habitat natural da alma é viver entre Deus e o Diabo. Como Deus é piedoso, dele aprendo a humildade, como o Diabo é infeliz, dele aprendo a vaidade. Ambos são improváveis, por isso merecem nossa fé.

Luiz Felipe Pondé
31/08/2009
Na Folha de São Paulo

Reflexiones cristianas en español

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uno Artículo em portugues
Por que os evangélicos são tão crentes, mas tão feios?

De tudo o que venho dizendo o que mais ofende aos meus irmãos evangélicos é o que digo com poesia. Quando moleque, ainda tão marcado pelo jeitão carioca, gostava de brincar com as pessoas que não entendiam a ironia. Fazia uma brincadeira, mas os sisudos entendiam tal e qual e se apavoravam, ou se irritavam e partiam logo para uma solução séria ou uma advertência. Percebia a surdez poética e divertia-me sadicamente com as ironias até o limite da paciência. Era o que na época chamávamos de “tirar uma casquinha”, uma molecagem.

A ironia é uma das tantas variações da mesma desistência, a da capacidade de expressar sentidos com as palavras ao pé-da-letra. Mas não uma desistência azeda, o que seria um silêncio lúgubre ou um queixume ranzinza, mas uma desistência bem humorada, leve e despretensiosa. A desistência dos poetas. Daqueles que preferem abrir mão do rigor da comunicação para não terem que ficar sem o prazer da comunhão. Já que nunca consigo traduzir tudo o que sinto e penso em palavras descritivas, divirto-me com as aproximações das metáforas. Modestas, mas cheias de beleza. Tão sugestivas, insinuantes e provocativas. Às vezes, os poetas exageram de tão felizes e se satisfazem apenas com o som das palavras, não dizem quase nada, mas tocam em quase tudo. Tão viçosas e livres dos caixotes semânticos.

Vejo Jesus nos evangelhos com esse comportamento poético. Divertindo-se um pouco com a dificuldade de ser compreendido. Por alguma razão que os evangelhos não explicam, mas que o nosso breve olhar suspeita, Simão é apelidado por Jesus de pedra, Pedro. Quando ele demonstra ter alcançado o que era dito, Jesus se diverte com o trocadilho: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja.” Mas quando se atrapalha com os sentidos, nosso falastrão experimenta o mesmo trocadilho às avessas: “Pedro, tu és para mim pedra de tropeço.” Quase vejo Jesus com um riso indisfarçável no cantinho da boca.

E que dizer das parábolas. Nem um pouco ingênuas. Insinuantes e provocativas. Apenas assimiladas pelos que tentassem ler as entrelinhas. Em um mundo em que a religião é instrumento de exclusão, mormente étnica, onde os samaritanos são odiados por sua atrevida proximidade religiosa e cultural, Jesus conta uma história com cara de ‘sem-querer’ para exemplificar o verdadeiro amor. É a parábola que aprendemos a chamar de O Bom Samaritano. Seu exemplo de desamor são os líderes da religião dos judeus, o levita e o sacerdote. Mas ocupa a cátedra da misericórdia um réprobo samaritano. Em outra, a que chamamos de O Fariseu e o Publicano, para mostrar o valor da oração, Jesus expõe ao ridículo a arrogância legalista dos fariseus e exalta os deploráveis publicanos, tão convictos de sua miséria quanto agraciados por Deus. Jesus fala uma linguagem apimentada.

Todos os escandalizados com o meu livro Salvos da Perfeição, sem exceção, tiveram dificuldades com a linguagem poética. Para eles mito é mentira. Ironia é profanação. Insinuação é atitude suspeita. Metáforas são antropomorfismos. Narrativa é linguagem escorregadia. Estética é leviandade. Poesia é heresia. E teologia é ler a Bíblia ao pé-da-letra. Assusto-me como eles reagem com zanga e agressividade. Lêem-me como investigadores policialescos. Seus esforços se parecem com uma tentativa de amordaçamento intelectual. Mas o que me assusta é que justamente na poesia é que se transformam em meus oponentes. Onde deveria haver deleite e deslumbramento, experiências com o belo, há apenas escrúpulo e estranhamento, experiências com o feio. Penso que não sabem lidar com a beleza e a descontração.

Pergunto-me por que nossos cultos não tem os cheiros nem os paladares tão criativamente espalhados por Deus para aventura de viver. Por que nossos templos são descoloridos e preferimos os cartazes de propaganda e as frases de admoestação aos quadros e esculturas dos artistas? Por que nossas músicas são, com freqüência, tão piegas e repletas de frases repetitivas e sem criatividade? Por que nossos sermões são mais bem considerados na medida de seus moralismos e advertências austeras? E nossas liturgias são tão previsíveis? Nossa indumentária, austera? Sugerem uma gente com medo das sensações, desconfiada de tudo o que não termine em conclusões de ordenança moral e afirmações peremptórias. Por que nossas festas são reduzidas à comilança? Sem dança e descontração, sentamo-nos ao redor de mesas para nos ocuparmos do único prazer que nos resta, comer.

Há muitas explicações possíveis. Em algum momento e por alguma razão que não me cabe agora, acatamos a idéia castradora de que nossos prazeres são desprazeres para Deus. Nosso mundo, concluímos, um lugar perigoso e disposto para nos prejudicar e condenar ao inferno eterno. Nele, temos que nos portar com a mesma tensão dos guardas noturnos em ruas perigosas. Descontrair é abrir brechas para entrada destrutiva de imaginários inimigos. O rigor paranóico enfeia nossos crentes.

Mas desconfio de uma razão anterior. Nossa leitura da Bíblia. Ela é bem mais que a leitura de um texto sagrado, ou um manual religioso. É um modo de ler a vida. Reduzimos o mundo ao que está escrito na Bíblia. Nada existe distintamente do que está previsto na revelação do texto sagrado. Daí o esforço hercúleo de fazer caber a nossa vida nas páginas canonizadas. Algo semelhante ao que faziam os chineses com os pés de suas mulheres. Uma antiga tradição chinesa dizia que as mulheres na China deviam ter pés pequenos, e para isso quando as mulheres eram crianças os seus dedos dos pés eram quebrados, pois assim as mulheres sem os pés cobertos não podiam percorrer grandes distâncias, não podendo fugir de casa. O reducionismo biblista dos evangélicos pratica culturalmente a mesma violência.

No entanto, ainda mais decisivo na leitura evangélica da Bíblia não é a pretensão de encaixar nela nossas vidas, mas de tratá-la com o mesmo rigor cientificista dos tratados acadêmicos. Desejando para os argumentos da nossa fé a mesma reverência dada às ciências naturais, tratamos de conferir a tudo o que dizemos a correspondência rigorosa e fiel com uma pretensa verdade. Sendo assim fomos treinados a ler tudo literalmente. Ficamos sem a ginga poética. Um crente fundamentalista lendo a poesia tão presente na Bíblia é como um lutador de Sumô tentando jogar capoeira.

Dar ao texto bíblico este estatuto de supertexto inibe qualquer relação mais espontânea e descontraída. Como devem ser a oração e a meditação. Uma Bíblia assim é uma castração existencial para os devotos. Mas nem creio que Deus compartilhe esta crença nem entendo que a Bíblia deva ser lida assim.

A Bíblia dos exegetas e seus métodos com pretensão científica é um corpo morto e inerte e sua exegese, uma exumação. A Bíblia dos que a lêem literalmente é semelhante à comida sem cheiro e cor e sua leitura é uma desleitura.

Prefiro ler a Bíblia como foi sugerido a João fazer com a revelação trazida pelo anjo. Parar de escrever e comer. A revelação nunca se dá plenamente na escrita. Ela precisa ser incorporada. Necessita transformar-se em algo mais que as palavras imediatas, ao pé-da-letra. Deve tornar-se a vida do João. Como o pão vira corpo vivo. Mas a descoberta atordoante de João nem foi o gigantesco anjo, nem os conteúdos da revelação, mas seu gosto agridoce. Doce na boca e amargo no estômago. Sua experiência mais apocalíptica foi a sápida. A revelação é cheia de sabor.

Esta Bíblia é a libertação da metáfora e da beleza. Para pessoas que além de crentes querem ser felizes e bonitas.

Elienai Cabral Junior, Brasil