segunda-feira, 6 de abril de 2009

As lições da transgressão

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
Dois casos da semana passada me chamaram a atenção e sobre os dois Scliar solta a sua imaginação.


1. Obrigado, professor

A Polícia do Rio prendeu ontem um homem acusado de, com diplomas falsos, ter trabalhado como engenheiro e professor universitário. Edson de Abreu, 44, apresentava-se como engenheiro civil formado pela UFF (Universidade Federal Fluminense), com duas especializações nos EUA. Mas, segundo a polícia, Abreu só concluiu o curso de técnico em edificações, equivalente ao ensino médio. Cotidiano, 3 de abril de 2009

QUANDO RAFAEL leu no jornal a notícia sobre a prisão do falso professor, não pôde conter uma exclamação abafada, uma exclamação na qual se misturavam a surpresa, a alegria e também a raiva. O que era explicável: ele tinha sido aluno daquele professor. E ter sido aluno do professor mudara sua vida. Isso acontecera quando ele fora reprovado numa prova. O que é, até certo ponto, um fato banal na vida de qualquer aluno, representava para Rafael uma catástrofe. Porque ele já havia sido reprovado em várias disciplinas, e o pai, impaciente, terminara por dar-lhe um ultimato: se você for reprovado mais uma vez, tiro você da universidade e você vai trabalhar. E aí viera a reprovação e o pânico. Em desespero, Rafael chegara a pensar numa medida extrema: subornar o professor. Venderia o carro e lhe ofereceria o dinheiro em troca de uma revisão da nota. Mas o homem parecia-lhe tão reto, tão austero, que não se atrevera a fazê-lo. Antes que o pai fizesse um escândalo, anunciou em casa que estava deixando os estudos. O que, ao fim e ao cabo, resultara numa bênção: a pequena empresa que criara ia de vento em popa e, apesar da crise, ele estava ganhando muito dinheiro. Um dinheiro que não ganharia jamais com um diploma

Agora vinha a espantosa revelação: o homem não era professor universitário coisa alguma. Era um enganador bem-sucedido. O que, concluiu Rafael, resultava numa lição. Não avaliável em prova, mas uma lição de qualquer modo.

2. Obrigado, carcereiro

Cerca de 40 crianças, de cinco a sete anos, estudam, desde agosto, em uma cadeia desativada em São Pedro do Iguaçu (oeste do Paraná). A única escola da comunidade foi destruída por um vendaval. Cotidiano, 3 de abril de 2009

O FILHO, de sete anos, voltou para casa furioso: agora a gente tem aula na cadeia, papai! O homem ouviu em silêncio, passou a mão na cabeça do menino, mas não disse nada. Como poderia dizer? Como poderia contar ao filho que naquela mesma cadeia -quando era cadeia de verdade- ele estivera preso, dez anos antes? Verdade que se tratava de uma transgressor menor, um furto, e que aquela era a primeira vez que ia preso; mas, para sua família, de gente pobre, mas honesta, aquilo era um desastre. Coisa que reconheceu e que o deixou profundamente deprimido.Salvou-o o carcereiro. Esse homem, ignorante, revelou-se um verdadeiro mestre. Dando-se conta da aflição do rapaz, procurou ampará-lo: veja isso como uma lição, trate de mudar sua vida, você conseguirá.

Saindo da prisão, arranjou um emprego, melhorou de vida. Casou, teve um filho, menino vivo, inteligente, que era para ele uma verdadeira realização. E agora o filho frequentava, ainda que de modo diferente, a mesma cadeia. Havia uma lição naquilo. Uma lição que não saberia, assim como o menino, traduzir em palavras candentes. Mas que era uma lição importante, ah, isso era.

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